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Jornal O Diabo

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ONDE, O NATAL?

 

Conto inédito de

António Manuel Couto Viana

  

Finalmente, a saída para a aldeia!

   Veio-lhe à memória o “Pátria Adorada”, sargento músico reformado, seu conterrâneo, que exercera, na cidadezinha próxima, as funções de professor de canto coral do liceu e de muitas associações recreativas, em todas ensaiando a marcha patriótica Pátria Adorada, da sua autoria (“Pátria adorada/ Meu doce encanto/Terra querida/Que eu amo tanto”...), que lhe rendera a alcunha.

      Rebelde a qualquer manifestação coral, sem voz nem afinação, ele chegou a odiar, pela insistência da marcha, a pátria adorada, a que regressava, agora, com emoção, com saudade.

   Vinha cansado de haver guiado milhares de quilómetros de auto-estradas monótonas através da França e da Espanha, com algumas chuvas e muita neve, para chegar na véspera de Natal. Descansava, pelas noites frias, com a mulher e os filhos nos motéis das Estações de Serviço. As refeições eram comidas à pressa, todas semelhantes na insipidez. Ele que, durante trinta anos, apurara o paladar no seu restaurante afamado da grande cidade turística dos Alpes franceses, para onde emigrara ainda adolescente na companhia de um tio fura-vidas, bom cozinheiro, que lhe ensinara a lida dos tachos, segredo dos temperos.

   Casara cedo com uma burguesinha do país estranho, que lhe deu dois filhos (Jean François e Charlotte) e lhe aprimorou o restaurante com conforto e elegância.

Chamava-se Rose, mas ele, com aquela negação para línguas, chamou-lhe Rosa e, aos filhos, João e Carlota. Em compensação, os três dominavam, com desembaraço, o português e aceitavam, com agrado, as viagens anuais ao berço paterno.

Isto fez com que decidisse construir uma moradia de férias na aldeia minhota, onde nascera, enroupada de verde dos vinhedos e dos milheirais, no deslizar de uma colina, perto da casa rústica dos pais, lavradores remediados, negociando o leite de quatro vacas turinas e pagando a um garoto o pastoreio do maior rebanho de cabras da povoação.

Enviara a um empreiteiro da cidadezinha a planta do edifício, após ouvir, atento e conciliador, as opiniões de Rosa.

Era um chalé alpino, de telhado inclinado, apropriado para os nevões inexistentes, maison vexada entre o granito e o colmo aldeões, como estrangeiro em pátria hostil.

Os pais haviam falecido no ano anterior, um atrás do outro, numa prova de amor duradoiro, citada pelo abade e por toda a freguesia.

Fora-lhe impossível assistir aos enterros, mas o tio, já regressado às raízes, com um bom pé-de-meia e uma camada dolorosa de reumatismo gotoso, representou-o, erguendo-lhes, a pedido do filho, um rico mausoléu no humilde campo-santo.

A estrada estreita parecia-lhe diferente, despida da densa verdura dos pinheirais.

O fogo passara por ali, no Verão escaldante. Confrangiam, aqueles espectros negros dos troncos calcinados, o chão de cinzas, o cheiro ainda acentuado a madeira queimada, todo um panorama lúgubre, trágico mesmo, a subir a colina, mas poupando, por sorte, o casario da aldeia, a emergir, nu, tiritante, dos caminhos vidrados de geada.

Avistava-se, de longe, mais alto do que a igreja românica, o chalé, garridamente pintado, com as suas portadas exteriores de madeira escura e a altivez das múltiplas chaminés dos fogões de sala.

O claxon do Mercedes novo em folha acordou a aldeia já ocupada a preparar a ceia tradicional.

O tio veio, trôpego, à porta do chalé, a recebê-los num abraço, com muito palavreado franciú para os sobrinhos pequenos e a entregar as chaves do mausoléu e da casa paterna.

Enquanto se inteirava das novidades da terra, dos custos da manutenção do chalé, a mulher e os filhos correram as salas, os quartos, a cozinha, descerrando janelas, desfazendo malas, pondo a funcionar o aquecimento central, a arca frigorífica, a televisão.

Ele entrou também, lançou um olhar satisfeito, de proprietário, aos móveis cobertos de lençóis, aos sofás, às poltronas, imaginando sestas prolongadas, preguiças de férias despreocupadas.

A mulher veio dos fundos, apressada, ofegante:

Mon ami, quelle domage! Não temos nada para jantar, nem para preparar o almoço de Natal de amanhã. E as crianças querem a sua árvore de plástico, os seus enfeites. Dá-me as chaves de carro. Vou fazer compras à cidade, ao centro comercial, ao super-mercado. Hoje fecham mais tarde. Levo as crianças comigo. Comemos lá qualquer coisa. Não esperes por nós que podemos demorar. Vou pedir ao tio que te mande uma sopa, uns ovos para uma omeleta. Há uns queques que eu comprei no caminho, para as crianças. Amanhã terás um bom almoço, descansa. Entretanto, dá um arrumo à casa, à mobília, estende os tapetes, pendura os quadros que trouxemos. E não percas a missa de galo.

Ouviu-a sem interromper.

Lá se ia a ceia com que tanto sonhara! Sabia que a não podia saborear na casa do tio, agora tão afrancesado, desprezando a simplicidade de um bacalhau cozido com grelos tenros da geada, todo virado para os souflés, as empadas, os pratos cobertos, combinações subtis de doce e do salgado e o vinho e o queijo, sempre presentes nos molhos, nas misturas.

Viu a mulher partir, ligeira, com a alegria dos filhos, no fito das prendas, das máquinas de jogo, feéricas e trepidantes, e começou a dispor a mobília e as carpetes a seu gosto, a pendurar os óleos que tinha adquirindo para a decoração dos quartos e das salas, com paisagens de abetos sob a neve.

Tocaram à porta. Era a empregada do tio com uma terrina fumegante e meia-dúzia de ovos num cesto enfiado no braço.

Tal como suspeitava, nem sombras de bacalhau!

A sopa era uma soupe au pistou, de legumes, com manjericão, muito elaborada e abundante de feijão, fava, cebola, batata, tomate... e queijo, claro!

Os ovos traziam um recado; que os batesse numa omelette quercynoise. Ele devia ter uma garrafa de Armagnac, um bocado de roquefort...

Preferiu-a simples, com a perícia que o orgulhava, ciente de que uma omeleta consagra o cozinheiro.

Comeu sem apetite, na solidão da mesa, num tabuleiro.

Mastigou um queque farinhento, saudoso das lautas sobremesas familiares de Natal minhoto: as rabanadas, os formigos, os pastéis de jerimu...

No almoço do dia seguinte, era sabido, só haveria o bolo-rei francês, do super-mercado.

Acendeu a televisão, onde só se viam figuras de Pai Natal e ficou-se modorrado, a fumar e a aguardar a meia-noite para a missa.

 Que, ao menos, ela lhe confortasse o espírito, lhe matasse a saudade dos antigos Natais: a igreja a brilhar de velas, as loas ao presépio ingénuo, e, no final, o beijo nos pés rosados do Menino, ritual que tanto o enternecia.

Os sinos começaram a tocar. Estava na hora. Vestiu o sobretudo e abalou.

À medida que se aproximava da igreja, começou a ouvir os sons insólitos de uma banda, semelhante àquelas dos festivais de Verão que lhe empolgavam os filhos.

Era da igreja que a música se escoava.

À direita do altar-mor, diante do velho presépio, soava um frenesim de instrumentos, soprados e dedilhados por um grupo de adolescentes.

Os fiéis saracoteavam-se, elevando os braços, cantando alegremente.

No altar, um padre amulatado, muito novo, balanceava-se, também, cantava, pulava, até.

Perguntou, para o lado, quem era.

Era o padre Nicanor, brasileiro, muito querido pela rapaziada da aldeia. Pensou no decrépito abade passa-culpas, a quem confessava a modéstia dos seus pecados. Detestava o espalhafato, humilde, discreto.

Se assistisse a tal espectáculo, morreria de novo.

Ajoelhou-se. Quase se envergonhou de se persignar.

A missa foi celebrada ao som da banda, dos cânticos frenéticos para os seus ouvidos relutantes à música, acompanhados de palmas.

Sentia-se ridículo no meio daquele Carnaval, como ousou classificar a santa eucaristia.

            Quando a folia terminou, perguntou a um dos assistentes:

            – Não se beija o Menino?

            – O bispo não deixa. É perigoso. É uma falta de higiene. Bem vê: os micróbios da saliva...

Saiu cabisbaixo.

Como estava velho, com quase cinquenta anos! O mundo dera um salto (para a frente? Para trás?) até na sua aldeia recôndita. E ele viera em busca da sua infância, da sua juventude, perdidas no tempo. Nos Alpes distantes, sabia que existiam, também, novas transformações, atrevimentos, novos costumes aceites pela Igreja.

Mas não os tolerava na saudade das tradições que todos os anos vinha procurar ali.

E, no entanto, ele igualmente as traíra, construindo o horrendo chalé destoante na beleza rústica da terra.

Naquela hora, não quis encarar a família. Precisava recolher-se consigo, acertar os pensamentos alterados.

   Tinha a chave da casa dos pais no bolso. Era a dois passos.

            Casa sólida, de granito forte, sobre o chiqueiro dos porcos, agora vazio.

   Trepou a escada exterior, de pedra.

            Abriu a porta com esforço. Acendeu o candeeiro de petróleo que o tio deixava sempre à entrada. Com ele aceso, foi até à cozinha de grande lareira, onde os pais costumavam seroar ao borralho.

   Ao canto, um molho de lenha. Empilhou-o sob a vasta chaminé e pegou-lhe fogo. O rubro da labareda iluminou-lhe a face pálida.

Era o tempo passado a regressar aos poucos.

Lembrou-se de ir buscar ao seu quarto uma caixa de cartão (ainda lá estaria?), só aberta uma vez por ano.

            Estava. Trouxe-a para a cozinha, para a luz da lareira, onde, na noite da consoada, deixava a sua bota cardada de menino aldeão, própria para chutar pedras soltas, chapinhar em rego d'água. Na manhã seguinte, abarrotava de roupa quente e brinquedos de madeira, comprados nas feiras.

Destapou a caixa. O presépio!

Presépio de barro tosco, toscamente pintado.

Dispôs as figuras, com cuidado, na mesa de pinho: o Menino na manjedoura, São José, a Virgem. Mais atrás, o burrinho e a vaquinha, na sua simpleza.

Pelo janelo, descerradas as portadas, escapou-se, como que por milagre, um raio de luar, iluminando de azul a Sagrada Família.

Trémulo, lento, retirou o Menino das palhas.

   E beijou-lhe os pés.

 

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