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O Progresso: um mito utopista com fim à vista

António Marques Bessa

 

Todos os anos gregorianos caímos na mesma esparrela armada pelo marketing armadilhado e ficamos convencidos de que estamos a celebrar algo de real. Na realidade não estamos a celebrar nada. E isso é um facto ululante.

 

O mito do Ano Novo remete-nos para uma esperança encantada na renovação das coisas, num mundo melhor, e as pessoas concertam-se a desejar melhorias entre si. O mito do Ano Novo, tal como se apresenta hoje, é um subproduto do mito do progresso avassalador, que exige que se deposite no futuro a certeza das melhorias que não se alcançaram no passado. As frustrações, perdas e retrocessos como que são submetidos à acção de um grande apagador universal, de modo que no quadro negro das nossas mentes se abre um espaço próprio preparado para as novas inscrições faustosas. Então 2010, seja lá o que isso for, é o ingresso num tempo novo e não estreado por nenhum mortal ou deus antigo. É um tempo reservado que só pode naquele dia, depois de bem bebidos, proporcionar a realização dos sonhos mais acarinhados.

 

Esta verificação geral, tão peculiar dos europeus e americanos e ainda em expansão em micromitos de uma mitogénese muito antiga, é de facto pouco romana e pouco tradicional. Para encontrar o ponto do tempo que cruzamos, quais argonautas do tempo sem bússola ou máquina cronológica, é infantil invocar com optimismo um tempo linear, segundo a crença recente no progresso.

 

Um dos sábios mais peculiares do mundo antigo traçou um mapa bem diferente do mapa que aceitamos. O grego Hesíodo escreveu que a Idade que se viveria pela sua altura era uma dura Idade do Ferro, decadente, sem horizontes e onde só os maus tinham uma palavra a dizer. Para trás estava a Idade de Ouro dos Deuses, e a Idade de Prata dos heróis. A Idade que iríamos viver durante muito tempo seria regida pelo ferro, pelas espadas, pela inclemência da Terra. O que devia repercutir até hoje, quando Ernst Jünger escreveu ‘Tempestades de Aço’, que dedicou à vivência da Primeira Grande Guerra. Eram o ferro e o aço, dos quais ainda não nos afastámos, que governavam a vida.

 

A época degradada é ainda aludida nas crónicas e sabedoria dos Vedas, que nos apontam que a vida decorre hoje sob um tempo dominado pelo destruidor da Criação: o tempo de Kali-Yuga, o que se tem por inevitável na sua interpretação canónica. Os próprios e autênticos cristãos sabem dogmaticamente que o futuro jamais poderá vir a reproduzir  o  estado original do Paraíso Perdido num espaço-tempo de tranquilidade e felicidade. Foi por isso que Milton se voltou para a poesia do ‘Paradise Lost’ e Blake escreveu e desenhou um Deus tão zangado e furioso com o que criou. Quer Milton, quer Blake, quer Mervin Pike com as ‘Crónicas de Gormenghast’, e que morreu doido, tinham essa centelha de sabedoria que antecipava o realmente acontecido e iminente no horizonte dos acontecimentos desagradáveis.

 

Três Nomes

Talvez o monge Viço, ao detalhar as três Idades e ao fazer um contraste entre a sua Idade (Idade dos Homens) com a Idade dos Deuses e a Idade dos Heróis fosse o primeiro pioneiro da Ideia de progresso que nos havia de invadir como uma lepra branca. É que a Idade do Homem dominada pela racionalidade assumia-se como um avanço em relação às idades em que predominavam a fé, os mitos e a arbitrariedade. Vico, com pretensões científicas, cotou-se na sociologia, mas foi um optimista. Na sua senda, e às vezes afastando-se dele, surgiram nomes muito fortes: Comte e Marx. O francês Auguste Comte do “Catecismo positivista”, inventor de uma religião, contava o tempo como uma sucessão de progressos que deviam culminar na época científica que hoje vivemos e que se entrevia no seu tempo. Nesse momento, todas as explicações seriam científicas e o poder político pertenceria a uma casta de tecnocratas e sociólogos, que imporiam a razão como matriz suficiente. Para trás estendiam-se idades de trevas, a que deu nomes de estudos desprestigiados: Idade Teológica e Idade Metafísica. À sua frente estendiam-se as virtualidades de uma era dominada pelas claridades das indústrias e pela emergência de poderes realmente racionais. Comte tinha lido Vico e o optimismo racional e a crença no progresso aí estava plasmada numa sociologia utópica e inventiva. O futuro era dos industriais, dos cientistas e dos sociólogos.

 

Não é nada disso que vemos. Mas Marx lera ambos, o que era grave, porque para lá das canecas de cerveja que bebia e do hegelianismo que o martirizava, assumiu o optimismo e ficou apto a pensar que o Geist (Espírito) tinha uma ideia para a História destes bichos humanos de grande progressismo porque se iria finalmente reconhecer e conhecer na sua realização. Ora que admira que a sociedade sem classes estivesse no fim do programa do Geist e do Marx? Hegel era progressista, Marx também, e finalmente o Geist também tinha de ser um crente no que criou.

 

Assim se enraizou a crença no progresso, nos trunfos da Ciência e numa vida sempre melhor, esquecendo que o mundo em si é um mundo de miseráveis e a cuja miséria escapa muito pouca gente. A miséria tornou-se uma doença endémica que exige um tratamento global. Mas quem serão os médicos? Os que querem vender vacinas, Tamiflu, que promovem as grandes indústrias farmacêuticas?

 

Claro que não. Parece que ninguém detém o “progresso” que agora não propõe a sociedade dos Homens como Vico, não lembra a sociedade industrial de Conte e a sua Igreja do progresso, nem já quer saber de Marx e da sua sociedade final sem classes. O que se propõe como fim da História, na versão que lhe deu Francis Fukuyama e outros cegos, é outra realização do Geist: é a “democracia”. E aqui é que está a verdadeira revelação. Não se pensa em mais nada. A História acaba aqui. Mas acabará de facto? Não existem pessoas que pensam outra coisa? Lá chegaremos com paciência.

 

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